Anteontem, entre pendengas e miudezas que ocupam a vida comum, li uma mensagem e levei um soco, bem no meio do dia e debaixo do mormaço: me diziam que Notas sobre a fome figurava entre os 10 títulos finalistas da Categoria Crônicas de um prêmio literário dos mais importantes no país, senão for o mais importante.

Fiquei estatelada, um pouco sem saber como reagir e nem onde deixar as mãos quietas.

Fiquei orgulhosa da minha escrita, confesso mas ao mesmo tempo fiquei surpresa, me sentindo parte nalgum roteiro um pouco surreal – a pandemia tem deitado normalidades nesse lugar.

Agradeço um tão grande reconhecimento, como é o da indicação para o prêmio Jabuti, muito mesmo, é importante para mim, importante para nós. Mas também gosto de lembrar sempre que nós existimos mesmo quando dizem que não e que produzimos epistemologias mesmo quando não nos escutam. Gosto sempre de lembrar que há, entre-mundos, sábios que não escrevem.

Agradeço pelos olhos, ouvidos e cabeça realmente abertas das curadoras e do curador da categoria, que ofertaram tempo a uma leitura atenta e sensível da palavra de tanta gente, inclusive da minha. Muito agradecida.

Desde que anunciei esta indicação, a maior alegria que tenho sentido é a de ver meus amigos e amigas, vizinhas, companheiras, as pessoas de todo dia, normais como eu, a celebrarem algo enquanto atravessamos esse momento de incertezas.

Escrevi sobre a fome, prova irrefutável de que este modo de viver não funciona e precisa ser abandonado. Escrevi sobre a escassez produzida como maldição e sobre as guerras de quem, mesmo com fome, procura o sol e respira na lama, com os caranguejos teimosos do mangue.

Sobre a fome que agora mesmo ronda nossas vielas, sobre as durezas que nossa carne atravessa mas que não nos definem porque encerramos também a celebração insistente do amor através de séculos de cólera.

Este é talvez o reconhecimento que mais alimenta o meu peito, reconhecimento que sustenta a minha palavra: o da comunidade que suporta meu peso no mundo caduco, apesar dele.

Fico feliz de reconhecer no conjunto dos finalistas outras possibilidades de contar a história do mundo além daquela que nos trouxe ao colapso.

Feliz e em algo esperançosa, porque o fim do mundo aí está e precisamos de quem possa contar sobre outros fins de mundo possíveis, que sejam talvez momento não apenas de abandonar os escombros falidos mas de parir mundo novo e vida nova em primavera geral.

Um salve pra todes que mandaram um xêro, um abraço, um axé e uma boa palavra.

Na nossa matemática, dividir é multiplicar.
É noiz quebrada!

Com Revisão de Sonia Regina Bischain, arte da Capa de Uberê Guelé, diagramação da Capa de Carolina Itzá e diagramação interna de Heloisa Yoshioka.


Helena Silvestre

Ativista nas periferias, Feminista Favelada, Escritora, Educadora na Escola Feminista Abya Yala e Editora da Revista Amazonas


Publicado originalmente em Sobre o prêmio Jabuti 2020

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